sexta-feira, 17 de setembro de 2010

Lucília Reboredo: os beija-flores, a palavra e a vida

Vem da tradição esotérica hebraica a crença de que, pleno de Seu esplendor, Deus resolvera contemplar a Deus – e assim desdobrando-se em ciclos celestiais de sete emanações, criou o Senhor mundos espirituais que orbitam plenos do poder espectral da alegria e do júbilo divinos. No entanto, segundo tal tradição, no quarto e último ciclo, pôs-Se Deus a criar o mundo da matéria – destinado à espécie humana. Então, num supremo instante genesíago, eis que o Senhor, cheio de som e de fúria, fez do verbo o instrumento criador de tal universo. Dessa forma, e para além da criação, unia também o Senhor, para todo o sempre, a força da palavra e o poder gerador da vida. Por isso, quando hoje, nos ciclos iniciáticos, aprende o discípulo a reproduzir – letra a letra – os textos da tradição em hebraico antigo, ensina-lhe o mestre-rabino iniciado: “Cuidado, menino, se inverteres uma letra desse texto estarás alterando também o universo!”.

Ainda que distante dos ciclos do esoterismo judaico – aos quais provavelmente jamais pertenceu –, mas comungando da ideia de que por meio da palavra transubstancia-se o esplendor da vida, a psicóloga e professora Lucília Reborado traz a público o seu iluminado livro A Dança dos Beija-Flores no Camarão Amarelo: curso e percurso do adoecimento. Acometida, desde 2003, pela esclerose lateral amiotrófica (ELA) – patologia que lhe tolheu completamente os movimentos do corpo, sua respiração e deglutição – Lucília, emanando-se à maneira divina e valendo-se do auxílio de uma tabela postada à sua frente, escreveu com olhos, piscando letra por letra, o texto que compõe as apaixonantes páginas de sua publicação – repleta de relatos emocionados e de (pasmem!) testemunhos bem-humorados que descrevem o curso e o percurso do adoecer da autora.

Enraizada em sua cama, condenada pela sorte ao claustro de seu próprio corpo imóvel, Lucília, em particular instante genesíago, desdobrou-se em palavras, repartiu-se em texto, emanou-se em verbos – num movimento de expansão espiritual que é, ao mesmo tempo, redescoberta, reinvenção e renascimento. Como os beija-flores que dão título à sua obra, as palavras de Lucília – ou Lucília refeita em palavras – sobrevoam os seres, bicam as almas e pousam sobre os ramos nodosos da árvore da vida. Por outro lado, também como um beija-flor às avessas, não é Lucília quem – parada no ar, sem movimento rápido de asas – suga o néctar das flores à sua volta. Pelo contrário: é ela que, com sua palavra-vida, leva no bico a essência açucarada do prazer de viver (essência essa só produzida por aqueles que sentem vibrar o corpo quando, simples e naturalmente, percebem que a vida foi feita para ser vivida sob quaisquer circunstâncias.

“Sei que apenas quebrei as asas e que terei de reaprender a voar” – segreda Lucília aos leitores de seu livro, então conhecedores de sua história. De fato. Que Lucília voe sempre – e seu voo carregue consigo também os nossos sonhos, e o ruflar de suas asas possa nos arrastar a todos – mesmo que à força, mesmo que a medo, por conta de nossa falta de coragem – pelos mesmos ares que animam o seu exercício. Que o néctar que tanto ela leva consigo em sua palavra-vida, e que já nos alimenta hoje por meio de seu livro, nos seja sempre abundante e nos dê sempre a certeza de que a vida sempre é possível, desde que eternamente reinventada.

Em tempo: A Dança dos Beija-Flores no Camarão Amarelo: curso e percurso do adoecimento é uma publicação da Jacintha Editores, e será lançado neste sábado, dia 18 de setembro, às 16 horas, no Centro Cultural Martha Watts – Rua Boa Morte, 1.257, Piracicaba.
Alê Bragion

(foto: pintura em telha produzida por Lucília Reboredo. Imagem gentilmente cedida pela Jacintha Editores).

__________________________________________________________________________
A Dança dos Beija-Flores no Camarão Amarelo - Curso e Percurso do Adoecimento.
De Lucília Augusta Reboredo
Apresentação: Ely Éser Barreto César
ISBN 978-85-60677-10-8
Piracicaba: Jacintha Editores, 2010

2 comentários:

  1. Obrigada, Alê.
    Texto perfeito!
    Mais uma homenagem, mais uma emoção.
    Parabéns.

    ResponderExcluir
  2. Obrigado, Zilma!

    Você sempre presente e muito generosa em suas palavras! Obrigado pelo carinho.

    AlÊ.

    ResponderExcluir