quarta-feira, 7 de julho de 2010

Arte Cemiterial: contos premiados!

O Primeiro Concurso Literário de Arte Cemiterial de Piracicaba - promovido pela Secretaria de Cultura de Piracicaba e realizado pela Biblioteca Pública Municipal Ricardo Ferraz de Arruda Pinto - anunciou, na última sexta-feira (1/jul.), os contos selecionados pela sua comissão julgadora. Em primeiro lugar ficou o conto "A Sétima Estátua," de Carla Ceres. O segundo lugar foi para "REQUIESCAT IN PACE," de Ademir Barbosa (o Dermes). Em terceiro lugar ficou o conto "Acredite," de Marcelo Andrade Nascimento.

No final de semana dos dias 17 e 18 (jul.), o Educativa apresenta um especial sobre esse concurso e traz também um delicioso bate-papo com os autores premiados Carla Ceres e Ademir Barbosa. Abaixo você pode ler e curtir os contos com os quais esses dois autores vencerem o concurso. Aproveite!
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A SÉTIMA ESCULTURA
(Carla Ceres)

Eu tinha apenas sete anos e estava ajudando meu pai na marmoraria quando aconteceu pela primeira vez. Foi rápido demais. Apaguei enquanto varria o chão. Correram parentes, correram clientes, correram vizinhos, correu a notícia:
- O Zizinho da marmoraria morreu!
Esse “Zizinho” era eu, mas só me chamavam assim depois de morto. Em vida, eu era “aquele moleque do Ziza”, “aprendiz de capeta”.
Foi tanta gente carinhosa vindo chorar no meu velório que desisti de morrer e voltei.
- Catalepsia - diagnosticaram os clientes mais cultos.
- Milagre - concluiu minha mãe.
- Parte com o diabo - sentenciaram os vizinhos.
A família precisou me desterrar para a casa de um tio, porque os clientes começaram a evitar nossa marmoraria. Achavam que eu não dava sorte.
Tio Olavo foi bom para mim. Generosamente aceitou minhas dez horas de trabalho diário, como aprendiz, na fundição. Assim eu não sentiria que estava “morando de favor”. Permitia-me, também, continuar esculpindo nos momentos de folga.
Ah, as esculturas, minha paixão, estiveram sempre comigo! Meu pai restaurava peças de mármore e me ensinou a esculpir usando retalhos de pedra. Na fundição, eu economizava cada centavo para imortalizar, em bronze, minhas pequenas criações.
Aos catorze anos, aconteceu de novo: morri e desmorri bem rápido. Tio Olavo se aborreceu. Era ”má publicidade”. Vendeu minhas estatuetas “pra pagar o prejuízo”. Um comprador, dono de galeria, gostou delas e me arranjou uma bolsa para estudar artes plásticas.
- Se ele vai perder tempo estudando desenho - disse tio Olavo - é melhor arrumar um emprego de verdade pra se sustentar.
Fui trabalhar na galeria. Trabalho fácil, estudo interessante, muito tempo livre, material à vontade para esculpir, passeios a museus... era o paraíso! E o paraíso é o inferno quando aparece assim, de repente, para quem não está acostumado com a boa vida. Comecei a pensar na morte.
As esculturas vendiam bem... e eu pensando na morte. Eu ganhava prêmios... e pensava na morte. Minha exposição era um sucesso... e a morte me fazia delirar.
Delírio ou visão? Não sei.
Eu ia fazer vinte e um anos e cismei que morreria de novo e, dessa vez, poderiam me enterrar vivo. O terror foi tanto que passei mal. O mundo se transformou numa neblina brilhante. Um anjo de mármore apareceu e falou comigo. Disse que meu mal nunca mais me atacaria se, a cada sete anos, eu doasse uma escultura para um cemitério. Seriam sete esculturas, uma a cada sete anos, o anjo da visão me disse.
A primeira doação foi para meu próprio pai, que faleceu no mês seguinte. Fiz um anjo da saudade. Meu tio Olavo gostou tanto que se ofereceu para me aceitar de volta na fundição. Abri mão da oferta porque estava com exposição marcada fora do país.
O túmulo de minha mãe, morta sete anos depois, recebeu a escultura de uma pranteadora. Eu ainda estava rezando quando tio Olavo bateu no meu ombro.
- Voltou da Europa pra enterrar os parentes? Veio fazer bonito pros jornais mostrarem como o “grande artista” é generoso?
Olhei incrédulo para ele.
- Pare de me olhar com essa cara de abutre! E guarde suas esculturas pro seu enterro! Eu ainda vou viver muito.
E viveu mesmo. Doei outras esculturas para pessoas desconhecidas, a cada sete anos. Meu mal nunca mais me afligiu. Enriqueci, envelheci e esperei. Esperei, ansiosamente, a morte de tio Olavo. Preparei, com todo ódio, a escultura de seu túmulo: a escultura de um velho com olhos maus, deixando cair um livro de contabilidade.
No ano em que eu deveria entregar a sétima escultura, tio Olavo adoeceu. Obstinadamente, aguardei seu falecimento, porém meu aniversário chegou e tio Olavo melhorou.
Morri ao receber a notícia de sua saída do hospital. O velho miserável me enterrou mais que depressa e ainda mandou colocar sua escultura por cima do meu cadáver.
Agora estou enterrado, mas continuo bem vivo. Quem quiser uma prova é só visitar meu túmulo, pois, de sete em sete anos, quando faço aniversário, o livro da escultura se abre e, em vez de contabilidade, suas páginas metálicas ilustram a história da minha vida.

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REQUIESCAT IN PACE - descanse em paz.
(Ademir Barbosa)

O que me encanta no cemitério são os anjos. Minha mãe, que nada entendia de latim, mas sabia tudo de anjos, dizia que nos pergaminhos suspensos pelos anjos se escrevia PAX porque no tempo em que foram criados por Deus era essa a grafia. Minha mãe foi enterrada num túmulo azulzinho, mas sem azulejos e anjos. Contudo, ao seu lado, o anjo atlético do túmulo da baronesa abana as asas sobre o jazigo de mamãe nos dias de verão. É uma companhia e tanto esse anjo.
O túmulo de mamãe é da família. Lá estão outros parentes, mortos há muito tempo. Dentre eles, vô Genésio, mais conhecido como Dom Eunuco. O velho ganhou no jogo do bicho, comprou um bar, cercou com arame farpado e bebeu até morrer. Antes, porém, havia morrido Virgulino, seu cão, e o cadáver havia ficado embaixo do balcão do bar, fedendo para ninguém entrar. Dom Eunuco ganhou esse apelido porque foi expulso de casa pelo sogro, que o ameaçou capar porque ele havia dormido com todas as cunhadas e a sogra. Foi salvo pelo pároco, que lhe deu o número de telefone de um primo distante, de Minas, e morreu na mesma noite. Dom Eunuco fez combinações com os algarismos, jogou e ganhou. Deu um sino novo para a igreja e mandou fazer um mausoléu para o pároco, enterrado no centro do cemitério, para onde acorrem famílias aflitas, pedindo-lhe paz, saúde, e inspiração para jogarem no bicho, na loteria, no bingo da paróquia, na quermesse da catedral.
Além de vô Genésio, dividem espaço com mamãe o primo Batuíra, menino morto porque sua bicicleta foi pega por um caminhão, e Zia Carmela. Quando Batuíra morreu, o túmulo tinha algumas rachaduras. A mãe dele não dormia, pensando que goteiras poderiam molhar os cabelos do filho morto. Então, apesar do período de chuvas, o marido foi ao cemitério e restaurou todo o túmulo, pintando-o de azul, o azul original sobre o qual vieram outros azuis (mas nenhum azulejo) ao longo do tempo e dos mortos.
Zia Carmela era o retrato da alegria, e mesmo no santinho da missa de sétimo dia ela estava sorrindo na foto. Aliás, no caixão ela sorria. Fazia doces em formato de animais:vaquinhas, esquilos, baleias e até centauros coabitando numa lata de panetone vinda da Itália. Fazia também cachecóis coloridos para os sobrinhos e pulôveres para os vizinhos, caminhos de mesa para as comadres e bolsinhas para as netas que estudavam fora e moravam sozinhas. Gostava de contar histórias, em especial quando trabalhava com as agulhas. Lobisomens de sítio, sacis, caixeiros sem cabeça, aparições de santos, trapalhadas de Mussolini, cachorros falando latim, padres vampirizados e uma famosa enchente do século passado eram alguns dos seus temas prediletos. Não saía de casa sem passar batom. Dizia que seu amor (não o falecido, mas um soldado inglês morto de tifo havia quase cem anos) a espreitava nas esquinas e às vezes a beliscava na padaria. Queria estar pronta para quando ele viesse buscá-la. Numa tarde de sol e algum vento, ele finalmente veio.
Dos outros parentes que jazem no mesmo túmulo, não vale a pena falar, pois não viveram. A baronesa certamente serviu de modelo para o anjo que protege e enfeita seu túmulo. Embora não haja registro disso nos arquivos do velho Fabretti, que gostava de ser chamado de escultor de mausoléus, vi muitas fotos da baronesa que correspondem ao anjo (a cintura sempre apertada, os seios proeminentes sob os vestidos, os olhos verdes, um tanto tristonhos, o sorriso de quem organiza obras beneficentes), e ela também já me apareceu em sonhos. A foto mais famosa é a do rosto, a mesma que ornamenta o túmulo, sobre as letras douradas do votivo Requiescat in pace. Mas há outras tantas nos arquivos da cidade, a baronesa sempre trajando cores fortes, como o vermelho e o amarelo. Em meus sonhos, geralmente não traja nada.
Foi estrangulada pelo marido porque gostava de nadar nua na cachoeira da fazenda, o que ele não permitia. Saía de manhãzinha, auxiliada por duas mucamas, e mergulhava na piscina natural formada pelas pedras. Secava-se ao sol, acariciando o corpo deitada na pedra maior. Dizia para o marido que ia à missa. Ele acreditava e ia visitar as escravas na sensala no mesmo horário. Um dia ela cochilou distraída na pedra grande, esqueceu-se do tempo enquanto as mucamas conversavam sob uma árvore. O marido, que resolvera campear a propriedade, passou pela cachoeira, viu a cena, e estrangulou a mulher. As mucamas choravam. Arrependido, encomendou o túmulo e o anjo ao velho Fabretti. Morreu louco, sem filhos, nem escravos e foi enterrado na capela da fazenda. Depois de sua morte, cúria diocesana, e depois a prefeitura, passou a cuidar do túmulo da baronesa, sempre impecável em seu mármore lustroso, local de peregrinação de mulheres em busca de cura para frigidez.
Um dia, o corpo sob a terra, saberei os segredos dos meus mortos, cujas histórias, vidas, datas, se misturam no mesmo pó.por ora, devo conhecer-lhes o destino (mesmo para evitá-lo), saber que baronesa não mais existem e que nunca foram anjos. Mas que os anjos podem ser mulheres, lá isso podem, desde que Deus os criou, num tempo em que, nuas, nadavam e descansavam nas pedras, em paz.

3 comentários:

  1. Obras de arte! Estes contos proporcionam uma leitura agradável, mesmo tratando de um assunto "quase tabu". Parabéns aos escritores e ao blog que proporcionou esta magnífica leitura.

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  2. Olá, Marcelo!

    Obrigado pelo carinho e pela visita ao nosso BLOG!

    Grande abraço.

    Alexandre.

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  3. Obrigadíssima pela publicação e pelo programa! Vocês são muito legais comigo.
    Beijos,
    Carla Ceres

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